segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Não sei...


Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e casta.
Não sei o que quer dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas de melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu ascético escuro e em turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a minha cara ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me falta
um girassol, uma pedra, uma ave qualquer
coisa extraordinária.

Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.


(excerto do poema Tríptico, publicado em A Colher na Boca, 1961)

Herberto Hélder
Poesia Toda
Lisboa, Assírio & Alvim, 1990

2 comentários:

ivone disse...

"amo devagar os amigos que são tristes
com cinco dedos de cada lado
os amigos que enlouquecem
e estão sentados fechando os olhos
não os chamo
e eles voltam-se profundamente dentro do fogo

temos um talento doloroso e obscuro
construímos um lugar de silêncio

de paixão"


deixo_te com uma síntese do meu preferido de herberto helder

ivone disse...

voltei após ter ido cuscar outros pots. deparei_me com a repetição deste texto a 12 de abril deste ano. costumo fazer o mesmo quando gosto muito muito muito de alguns textos.


até jazz